Sonhos e Inception (A origem )


De que são feitos os sonhos? O que significam essas imagens, as sensações e essas cidades que se dobram sobre si? Com A Origem, Christopher Nolan nos lembra que, no fundo dos delírios das noites de sono, encontramos a nós mesmos.










  • Criai ânimo, senhor; nossos festejos terminaram. Como vos preveni, eram espíritos todos esses atores; dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. E tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono.
Shakespeare, "A Tempestade", Ato IV, cena I


Os fetos sonham dentro do útero. A partir do oitavo mês de gravidez, os sonhos podem ocupar 30% do tempo em que dorme, nos adultos, essa fase ocupa cerca de 25%. São sonhos sensoriais, baseados nos sons que os cercam, na temperatura, no quanto sacolejam em uma viagem de ônibus. Os recém-nascidos sonham com o útero, nós também. Sonhamos para digerir os dias, as horas e os momentos. Sonhamos com coisas supostamente esquecidas, com desejos inconfessáveis, com o desconhecido que somos.
A oniromancia prevê o futuro através da interpretação dos sonhos e goza de grande simpatia no mundo judaico-cristão: São José fora avisado em sonho de que sua esposa Maria iria conceber uma criança e que o menino seria de Deus, que devia relaxar. Em 1901 Freud lança “A interpretação dos sonhos”, uma publicação polêmica. Para o alemão, os sonhos seriam meramente uma fachada, por trás dela estariam seus reais significados: desejos irrefreáveis, perversões e vontades que jamais passariam por nossa censura moral sem nos deixar de aterrorizados e a seriamente perturbados.


É engraçado que sejamos encontrados justamente lá, onde não há controle, onde o mais perturbador e mais delicioso dos pensamentos, a mais aterrorizante das memórias podem nos atacar. Um falo gigante caindo sobre nossas cabeças, uma volta ao útero, uma culpa suprimida. Saber é agir, reza forte a psicanálise, tomar consciência (literalmente) do significado de um pênis gigante aparecer fantasiado de havaiana em seus sonhos recorrentes, embora se configure uma experiência desagradável, é a melhor saída para eliminar uma neurose com praias.
Então, sem aviso, nos aparece Cristopher Nolan. Nolan é um homem corajoso, ou imprudente, dizem, o que dá no mesmo. A temática dos sonhos já foi tão explorada nos cinemas, por tão grandes gênios que tentar reerguer um assunto de tamanha sutileza, ainda mais num blockbuster, poderia ser fatal. Mas A Origem (Inception, EUA, 2010) é um filme que vai ficar. Talvez não à princípio, à princípio ele é tão apenas um filme com tiros e explosões e um final que te faz levantar da poltrona com um bocadinho de raiva, mas então sua forma se revela e ele reverbera, vai ficar... martelando na sua cabeça. Ganha visões e comentários, vence novamente o fascínio dos sonhos, da realidade e do delírio.






Inception consegue ser, simultaneamente, metarreferência (ao falar em si, sobre si) e analogia (à psicanálise). Je ne regret rien, é a canção que traz de volta os personagens para o mundo real, o da vigilância. Cobb (personagem de DiCaprio) assim o faz, completa se trabalho psicanalítico, chegando no mais profundo de seu estágio inconsciente/onírico para descobrir que não, de forma alguma, não deve se arrepender de nada. Deve agir, voltar e não ouvir o desejo oculto de Mal, sua mulher morta. Mal (Marion Cotillard) é o próprio mal mesmo (a escolha do nome revela a metarreferência), o desejo de morte e de negação de si, de suas memórias. Já Fischer (Cillian Murphy), contraponto de Cobb, fachada de Cobb, representação de Cobb, corajosamente vai ao fundo de si e resgata uma cara lembrança dos tempos de criança, reconcilia-se com o pai renegando o que de triste ele era. Resgata a infância e a si mesmo, a vida, retoma a posse de suas escolhas.
Está tudo lá nos nossos sonhos. A matéria de que somos feitos, nós mesmos girando incessantemente, buscando emergir sobre a consciência, sobre a cultura, a educação, os medos, tentando implantar um tirânico império dos desejos. Foi com essa ideia implantada nas nossas mentes que atravessamos esta semana em um olhar mais demorado sobre A Origem, uma narrativa fantástica que se dobrou sobre si como aquela cidade curvou suas ruas, colocou para o alto os prédios e fez os carros transitarem sobre o céu. Caminhamos nela. Cinema para fazer sonhar acordado, nos propôs Nolan, uma viagem que dificilmente vamos esquecer.


Veja um pequeno making of






Fonte: Obvious

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